O “CENTRINHO”  DE  BAURU

MIGUEL REALE

 

                   “O poder é uma oportunidade de fazer o bem”. Esse pensamento veio-me à mente, o mês passado, em Bauru, onde me encontrava a convite dos dirigentes da Faculdade de Odontologia e do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo. Entenderam eles, conjuntamente com o Prefeito e a Câmara Municipal locais, que eu devia participar, como homenageado especial, das comemorações do trigésimo quinto aniversário daquele nosocômio.

                   Tudo resultou da visita que me fez, na Reitoria da USP, em meados de 1972, o diretor da mencionada Faculdade, professor Luiz Ferreira Martins, expondo-me o plano de nela fundar um centro destinado a dar assistência médico-cirúrgica gratuita aos pacientes, sobretudo crianças e adolescentes, com malformações craniofaciais. Entusiasmou-me essa idéia de restituir sorriso aos portadores de fissuras labiopalatais, bem como tratamento aos deficientes auditivos, causas de tremenda exclusão social, motivo pelo qual destinei incontinenti as verbas necessárias para dar início a obra tão meritória.

                   Nada me pareceu tão enquadrado no espírito da reforma universitária então em curso, obedecendo ao lema de realização conjunta de ensino, pesquisa e prestações de serviço à comunidade, razão pela qual, ao inaugurar o “Centrinho”, como carinhosamente passou a ser chamado, no dia 22 de março de l973, me pareceu justo proclamar: “aqui pulsa o coração da universidade nova”.

                   Sempre entendi que, se nos países mais ricos as grandes pesquisas científicas são realizadas, geralmente, por poderosas empresas, visando fins teóricos e práticos, nas nações em desenvolvimento, ao contrário, essa tarefa cabe principalmente às universidades e, mais obrigatoriamente, às universidades estatais. É claro que, se as instituições privadas ministrassem o ensino superior com plenitude de consciência pedagógica, também elas reconheceriam que, em um mundo tecnicamente globalizado, não tem sentido limitar o ensino às aulas teóricas, impondo-se a abertura para as “investigações de laboratório”, tomada esta frase no mais amplo significado, a fim de abranger as ciências humanas.

                   Não se esgota aí a missão da universidade nos países de parcos recursos orçamentários, devendo ela estender seus serviços à coletividade, por todos os meios a seu alcance. Foi essa visão global que me levou a ver no Centrinho de Bauru um exemplo a ser imitado, mas confesso que não podia antever a grandiosidade de suas realizações, até o ponto de serem considerados  “de excelência” pela Organização Mundial de Saúde os serviços prestados no campus bauruense da USP.

                   Não podia, com efeito, ser mais completa a atuação da citada Faculdade de Odontologia e de seu anexo Hospital, graças à potenciação de suas atividades pela “Fundação para o estudo e tratamento das deformações craniofaciais”, FUNCRAF.

                   Verifico com a maior emoção o que a FUNCRAF já realizou e está realizando, não apenas no que se refere ao tratamento da surdez, envolvendo prolongadas e sucessivas operações cirúrgicas, mas também proporcionando, pelo Brasil afora, transporte gratuito às famílias dos doentes desprovidos de recursos, com repercussão até mesmo no estrangeiro.

                   É deveras comovente verificar que a assistência social abrange o que se denomina “Retaguarda Hospitalar”, ou seja, um estabelecimento destinado a acolher e alimentar os pacientes desnutridos e seus familiares, em geral uma mãe aflita, sem o que não seria possível submetê-los a adequado e longo tratamento médico.

                   Além disso, a FUNCRAF – valendo-se dos recursos fornecidos pela USP, pelo “Sistema Único de Saúde” (SUS), através do respectivo Ministério, e pela Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo – dá o melhor amparo a dezenas de milhares de doentes do Brasil inteiro, inclusive no que se refere ao fornecimento de aparelhos de audição, cujo custo varia de US$170 a US$720.

                   Por outro lado, consciente de sua imensa função humanitária, a FUNCRAF cuida de levar para outras cidades e Estados o atendimento oferecido pelo Hospital, já estando em funcionamento pleno as unidades paulistas de Santo André e Itararé e em Campo Grande, Estado de Mato Grosso do Sul.

                   Não creio, à vista do exposto, que haja no País entidade que combine tão humanitariamente os frutos do saber científico com as exigências éticas da vida prática, tudo fazendo para vencer a surdez, uma das maiores causas de exclusão social. Foi por isso que, ao agradecer as homenagens que me eram prestadas, afirmei que  Bauru é a capital brasileira da comunicação. Basta dizer que se chegou ao ponto de organizar um coral de crianças surdomudas em surpreendente harmonia conjunta de gestos!

                   Perguntar-se-á quais foram as razões determinantes de tão relevantes resultados, e me parece que devem ser atribuídas a uma série de fatores, desde o acervo de conhecimentos acumulados pelos mestres do Hospital de Bauru até a missioneira atuação da FUNCRAF.

                   É com a maior ênfase que me refiro a esta, pois somente ela poderia assegurar, durante dezenas de anos, a tão indispensável continuidade administrativa, sempre mantida em alto nível por essa figura exemplar de servidor público que é o professor José Alberto de Souza Freitas, carinhosamente conhecido como “Tio Gastão”.

                   Ao me referir à FUNCRAF, não posso deixar de fazer alusão, vaidade à parte, à Resolução por mim baixada, em 1973, autorizando a constituição de fundações na USP, destinadas a granjear recursos extraorçamentários exigidos para a pesquisa e a prestação de serviços à comunidade. Se fundações há que não sabem aplicar devidamente os valores angariados; se, como alegam alguns críticos, há desvio ou abusos, o que deve ser corrigido, só o que foi possível realizar em Bauru legitima a idéia que tive no meu segundo reitorado.

                                                                                     11/05/2002